martes, 17 de febrero de 2009

into the wild

viernes, 6 de febrero de 2009

pasatiempos

"el verdadero héroe se divierte solo."
Baudelaire

domingo, 1 de febrero de 2009

os amantes regulares -pastiche de uma vida por vir

Acordo com a sensação de que vou chegar atrasado à minha própria homenagem. Do outro lado da janela o imaginário da paisagem galega ganha contornos de sépia. Tenho um sabor peganhento na boca e um par de mamas a roçarem-me a parte lombar. A Lili está a roncar desde as quatro da manhã quando deixámos de falar e de tentar fazer amor à medida que ela se abandonou ao cansaço da viagem, não antes de me murmurar...Mon petit, embora sejas o novo prémio PEN Clube já não és superman. Trinta anos de partilhar o mesmo quarto de hotel em congressos e palestras internacionais, de precisarmos um do outro, neste mundo em que esposas e quinquénios de cultura nos separam da vida, alimentavam-lhe a Lili o poder de me sancionar. Já fui o violador da Biblioteca Nacional.Sim, o melhor maratonista erótico do hemisfério nórdico. Ainda me lembro, sim, mas os músculos envelhecem. Os meus também. Olha.E num gesto de apanhar fruta madura mostra-me os seus seios como evidência da decadência. Esses que já foram os seios mais gloriosos dos departamentos de história antiga de Portugal inteiro e arredores. A crueldade da luz da manhã revelava-me agora os círculos concêntricos desse pescoço culpado, pelos vistos, de tanto ressonar e a sua cara deformada contra as dobras da almofada. Se fecho os olhos volta a ser a Lili de há trinta, vinte anos, radiante depois de uma sessão de sexo linguístico; quando os abro sobrevive ainda durante alguns instantes essa miragem até que se impõe o corpo flácido de tantas camas sucessivas, o seu corpo desprotegido de qualquer possibilidade de simulação.São as oito da manhã e o programa começa às dez e meia. O grupo universitário de teatro da Corunha montou uma peça, autobiográfica, diz o folheto de apresentação, O Regresso do Homem-Gralha da trilogia Tristes Tópicos. Estou muito curioso para ver como resolveram cenograficamente a fronteira Paris-China. Segue um pequeno intervalo para as autoridades chegarem ao meu discurso urbi et orbe. Haverá depois um almoço muito oficial e à tarde as intervenções dos meus colegas: la crème dos gralhadistas nacionais e internacionais, alguns já especializados em estudos post-saxofónicos, outros com textos seguramente apresentados também em colóquios similares de estudos de género. Os glossários da minha vida e obra serão, sem dúvida, inéditos.Levanto-me da cama com esse cuidado que se deve ter na minha idade para não escorregar e partir a bacia, como se esses ossos fossem a caixa negra do nosso esqueleto. Artrose não tenho, de certeza, se ando com a mesma altivez e a mesma leveza que caracterizaram as minhas andanças pelos corredores de tantas faculdades de letras e pelos campus das mais famosas universidades dos Estados Unidos e Europa, as minhas andanças e os meus cabelos brancos fazem parte da minha lenda e se perdesse esse andar elegante ou os meus cabelos luminosos tenho a convicção de que iria proibir os pentes e os espelhos nas casas de banho. Mas, não, artrose, nunca, eu que já tive mais ou menos relações com cinquenta e duas mulheres, menciono – mulheres conhecidas. Relações regulares ou, enfim, podia pelos menos tê-las quando eu quisesse, só uma morreu num acidente de carro. Com o tempo, é óbvio, as fui eliminando da minha libido e, pouco a pouco, da minha memória imediata e, por fim, da lista de contactos do gmail e da agenda que guardo numa gaveta fechada à chave no meu escritório. Ficam ainda cinco mulheres nela e só uma é uma incorporação dos últimos cinco anos, Livia, uma milanesa que estava a começar um doutoramento em estudos saxofónicos, na área da lírica boeciana. A última vez que fizemos amor foi há três anos e eu ainda ia para a cama sem medo, especialmente com ela que era tão jovem, com aquele ar frágil e alourado das italianas do norte. Era a amante que precisava de um catedrático e eu o sexagenário que precisava acrescentar à sua autoridade sexual a autoridade académica. Com ela funcionava porque era tão inocente, tão submissa que o seu orgasmo parecia a sublimação do seu respeito académico, fruto da sua simpatia genuína e o meu – o desabrochar duma tardia e rara flor-de-papiro.Num canto do espelho, vê-se ainda recortado na cama, entre lençóis amarrotados e a roupa de ontem, o corpo dormente da Lili. Mas não, não vou deixar que alguma coisa estrague o meu dia. Quando descer agora, sei que haverá gente à minha espera no foyer do hotel, gente entusiasmada com grandes expectativas, e eu vou ter que corresponder à medida certa e vou fazê-lo, tenho vontade de fazê-lo porque hoje é decididamente o meu dia, e ninguém tem o direito de mo tirar, nem eu próprio quando me autoavalio e fico inquieto por algo que me aconteceu, nem mesmo estes prémios e homenagens que me ofereceram só para me obrigarem a pedir a reforma.